domingo, 14 de março de 2010

IGUALDADE ENTRE A FILIAÇÃO BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA

*
Belmiro Pedro Welter
Promotor de Justiça,
Mestre em Direito,
Professor de Direito de Família e
Autor de 10 Livros de Direito de Família.


SUMÁRIO: 1. Considerações Iniciais; 2. Espécies de Filiação Socioafetiva; 2.1 Filiação afetiva na adoção; 2.2 Filiação sociológica do filho de criação; 2.3 Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade; 2.4 Filiação socioafetiva na "adoção à brasileira"; 3. Conceito de Estado de Filho Afetivo (Posse de Estado de Filho); 4. Posse de Direitos Reais e Estado de Filho Afetivo; 5. Elementos que Caracterizam o Estado de Filho Afetivo; 6. Paternidade e Maternidade Socioafetiva; 7. Breve Abordagem Psicanalítica da Filiação; 8. Irrevogabilidade da Filiação Socioafetiva; 9. Desnecessidade de Legislação Infraconstitucional para o Ajuizamento da Ação de Investigação de Paternidade Socioafetiva; 10. Considerações Finais.

1 - Considerações Iniciais

Os princípios constitucionais da igualdade, da proibição de discriminação entre a filiação, da supremacia dos interesses dos filhos, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, os dois últimos elevados a fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, não admitem a discussão da origem da filiação, biológica ou socioafetiva, não importando se de reprodução humana natural (sexual, corporal) ou medicamente assistida (assexual, extracorporal, laboratorial, artificial, científica).

Residem ferrenhas controvérsias no cenário jurídico brasileiro acerca da manutenção, ou não, das três verdades da perfilhação: formal, biológica e sociológica. O embate jurídico entre os operadores do Direito é enunciação de que a discussão será mais acalorada sobre as diversas interpretações a serem dadas na reprodução humana medicamente assistida, motivo por que o jurista, ao se manifestar sobre a paternidade ou a maternidade, seja sexual ou assexual, biológica ou afetiva, não pode consignar um ponto final, mas, sim, três pontos (...), ou seja, sua idéia será apenas um piso, e não teto hermenêutico, justamente porque lidamos com família, ou melhor, com seres humanos, cada qual com as suas idiossincrasias, individualidade, ancestralidade, identidade, formação social, singularidade e dignidade. Significa, enfim, que tudo o que for dito sobre reprodução humana corporal ou extracorporal deve ser visto de soslaio, na medida em que o debate doutrinário se encontra na fase gestacional, não havendo, por enquanto, engenharia genética capaz de clonar os princípios da prioridade e da prevalência absoluta dos interesses dos filhos.

Como norte, são invocados o art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, disciplinando que "os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação", e o art. 227, cabeço, do texto constitucional, estabelecendo que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

A contar do Contrato Constitucional de 1988 e do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), não é mais possível interpretar o Direito de Família com base no Código Civil de 1916, mas, sim, sob uma ótica garantista e ultrapassando a ontologia da coisa, porque não são os objetos que explicam o mundo, e sim este é o instrumento que possibilita o acontecer da explicitação dos objetos, eliminando o "caráter de ferramenta da Constituição: a Constituição não é ferramenta – é constituinte (...). Temos de des-objetivar a Constituição, tarefa que somente será possível com a superação do paradigma metafísico que (pré)domina o imaginário dos juristas", (des)velando, assim, alguns princípios constitucionais: 01) da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF); 02) da cidadania (art. 1º, II); 03) da igualdade entre a filiação (art. 226, cabeço); 04) do pluralismo e da democracia no recanto familiar, com a liberdade de escolha da espécie de família (art. 1º, V); 05) da igualdade dos cônjuges (art. 5º, inciso I); 06) da liberdade, da justiça e do solidarismo no trato das relações familiares (art. 3º, I); 07) da beneficência em prol da unidade familiar (art. 3º, IV); 08) da instituição da filiação socioafetiva (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º); 09) da equivalência da filiação biológica e afetiva (arts. 226, § 7º, e 227, § 6º); 10) da pluralidade das entidades familiares (art. 226, §§ 1º, 3º e 4º); 11) do bem-estar familiar (art. 227, caput); 12) da proteção absoluta e integral dos filhos – crianças e adolescentes (art. 227, cabeço); 13) da igualdade e da beneficência entre os membros da família (art. 226, cabeço e §§ 4º e 7º); 14) da equiparação entre casamento e união estável (art. 226, cabeço e § 3º), cuja nova ordem constitucional é auto-aplicável.

2 - Espécies de Filiação Socioafetiva

A família antiga era numerosa, edificada no casamento, tendo o pai o poder de vida e de morte sobre a mulher, filhos e escravos. O Código Civil de 1916 regula a família patriarcal também com base na hegemonia de poder do pai, na hierarquização das funções, na desigualdade de direitos entre marido e mulher, na discriminação dos filhos, na desconsideração das entidades familiares e no predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento do aspecto afetivo. A família do terceiro milênio é formada pelo casamento, união estável e pela comunidade formada por qualquer dos pais e o filho, denominada família nuclear, pós-nuclear, unilinear, monoparental, eudemonista ou socioafetiva. É observada a igualdade entre casamento e união estável, no predomínio dos interesses afetivos em detrimento do patrimonial, não havendo mais a hierarquia de seus membros, mas, sim, o interesse na felicidade recíproca (novo Código Civil e arts. 226 a 230 da Constituição Federal), já que, "sem amor, não há família". Atualmente, existe somente uma história a ser contada sobre a família: a democrática, com vida familiar individual e solidariedade social, "igualdade emocional e sexual; direitos e responsabilidades mútuos nos relacionamentos; co-paternidade; contratos vitalícios de paternidade; autoridade negociada sobre os filhos; obrigações dos filhos para com os pais; a família socialmente integrada", demonstrando, assim, que "nenhum outro ramo do Direito vem recebendo tantos influxos e nem passando por tantas mutações". Reconhecida constitucionalmente a família afetiva, não há motivo de os juristas biologistas oporem resistência à filiação sociológica, visto que, lembra LUIZ EDSON FACHIN, é tempo de encontrar na tese biologista e na socioafetiva espaço de convivência, isso porque a sociedade não tem o interesse de decretar o fim da biologização, "clara e estampada na superação do modelo patriarcal codificado e nas estruturações de novos paradigmas para a família na constitucionalização". Concordo, assim, com LUIS ALBERTO WARAT ao lançar a advertência de que se deve ter "desconfiança crescente com relação àqueles que fazem das idéias armas para um combate intolerante".

A filiação socioafetiva compreende a relação jurídica de afeto com o filho de criação, quando comprovado o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade e a conhecida "adoção à brasileira".

2.1. Filiação afetiva na adoção

A adoção é um ato jurídico e um ato de vontade que se prova e se estabelece através de um contrato ou de um julgamento (ato de vontade do juiz, mas que supõe previamente a vontade do(s) interessado(s). Esse instituto não foi criado recentemente, constando do art. 185 do Código de Hamurabi (1728-1686 a.C.), pois a verdade socioafetiva "é tão real como o que une o pai ao seu filho de sangue, e os efeitos que do primeiro emergem são tão reais como os que decorrem do segundo".


2.2. Filiação sociológica do filho de criação

A filiação afetiva também ocorre naqueles casos em que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, (des)velando-lhe todo o cuidado, amor, ternura, enfim, uma família, "cuja mola mestra é o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto". Mas, com relação a essa filiação, não há convergência na doutrina e na jurisprudência, o que se haure de dois julgamentos do Tribunal de Justiça sul-rio-grandense: a) "No sistema jurídico brasileiro não existe a adoção de fato, e o filho de criação não pode ser tido como adotado ou equiparado aos filhos biológicos para fins legais, tais como direito à herança"; b) "A despeito da ausência de regulamentação em nosso direito quanto à paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção à criança (art. 227 da CF), assim como da doutrina da integral proteção, consagrada na Lei nº 8.069/90 (especialmente arts. 4º e 6º), é possível extrair os fundamentos que, em nosso direito, conduzem ao reconhecimento da paternidade socioafetiva, relevada pela posse do estado de filho, como geradora de efeitos jurídicos capazes de definir a filiação".

2.3. Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade

Quem comparece perante um Cartório de Registro Civil, de forma livre e espontânea, solicitando o registro de uma vida como seu filho não necessita qualquer comprovação genética para ter sua declaração admitida, lembra JOÃO BAPTISTA VILLELA, mas, em decorrência, somente "poderá amanhã invalidá-la se demonstrar, por exemplo, que sua manifestação não foi livre, senão coacta ou produzida por erro, ainda que seja, efetivamente, o procriador genético". Esses termos são afiançados por LUIZ EDSON FACHIN ao certificar que, "aquele que toma o lugar dos pais, pratica, por assim dizer, uma 'adoção de fato'. O 'pai jurídico' tem o seu lugar ocupado pelo 'pai de fato'".

No reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade é estabelecido o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), não importando se biológico, ou não, o que "atribui direitos que provocam efeitos, sobretudo morais (estado de filiação, direito ao nome, relações de parentesco) e patrimoniais (direito à prestação alimentar, direito à sucessão, etc.)".

Em decorrência, discute-se na jurisprudência se o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade e maternidade é revogável, ou não, nos seguintes termos: 01) "Por mais que se afigure deplorável a atitude de um homem que, por treze anos, acalenta o fato de ser o pai de alguém, para depois destruir essa verdade socioafetiva, não pode prevalecer um registro de nascimento falso, pois, no nosso País, vige o critério da verdade biológica da filiação"; 02) "Quem, sabendo não ser o pai biológico, registra como seu o filho de companheira durante a vigência de união estável, estabelece uma filiação socioafetiva, que produz os mesmos efeitos que a adoção, ato irrevogável. O pai registral não pode interpor ação negatória de paternidade e não tem legitimidade para buscar a anulação do registro de nascimento, pois inexiste vício material ou formal a ensejar sua desconstituição".

2.4. Filiação socioafetiva na "adoção à brasileira"

A quarta identificação da filiação sociológica decorre da conhecida "adoção à brasileira", em que alguém reconhece a paternidade ou maternidade biológica, mesmo não o sendo, cuja conduta é tipificada como crime (art. 299, parágrafo único, do Código Penal). Nesse caso, é edificado o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), tornando, dessa forma, irrevogável o estabelecimento da filiação, na forma dos arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º, da Constituição Federal, pelo que "a declaração de vontade, tendente ao reconhecimento voluntário da filiação, admitindo alguém ser pai ou mãe de outra pessoa, uma vez aperfeiçoada, torna-se irretratável".

Na jurisprudência também é dito que a adoção "à brasileira" torna-se irrevogável quando edificado o estado de filho afetivo, pois, nesse caso, nasce a filiação socioafetiva, reconhecida constitucionalmente (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º, da CF), o que se infere dos seguintes julgados: 01) "Ação de anulação de escritura pública de reconhecimento da paternidade. Adoção à brasileira. O reconhecimento espontâneo da paternidade daquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, registra como sua a filha da sua companheira, tipifica verdadeira adoção, irrevogável, descabendo posteriormente a pretensão anulatória do registro de nascimento. Extinção do feito, sem julgamento do mérito (art. 267, inciso VI, do CPC)"; 39 02) "Registro de nascimento. Reconhecimento espontâneo da paternidade. Adoção simulada ou à brasileira. Descabe a pretensão anulatória do registro de nascimento do filho da companheira, lavrado durante a vigência da união estável, já que o ato tipifica verdadeira adoção, que é irrevogável".

3 - Conceito de Estado de Filho Afetivo (Posse de Estado de Filho)

Ostentar um estado de filho é, segundo ORLANDO GOMES, "ter de fato o título correspondente, desfrutar as vantagens a ele ligadas e suportar seus encargos. É passar a ser tratado como filho". E o estado de filho afetivo, acrescenta o autor, é identificado pela exteriorização da condição de filho, nas seguintes circunstâncias: "a) sempre ter levado o nome dos presumidos genitores; b) ter recebido continuamente o tratamento de filho; c) ter sido constantemente reconhecido, pelos presumidos pais e pela sociedade, como filho".

A investigação de paternidade é a ação de estado mais relevante da filiação, tendo por objeto o "acertamento do estado da pessoa, seja para afirmá-lo, quando ela não lhe está na posse, seja para contestá-lo, quando um terceiro quer privá-la das vantagens de um estado em que se acha, sem a ele ter direito(...)". Quer dizer, "as ações de estado são 'destinadas a dirimir as controvérsias relativas ao status personae, o estado de uma pessoa e, especialmente, no estudo da filiação, o status de filho". A doutrina, de um modo geral, afirma que a filiação afetiva "consiste no gozo do estado, da qualidade de filho legítimo e das prerrogativas dela derivadas", e "a posse e o estado são inseparáveis, pois se possuem simultaneamente o estado de pai e o estado de filho".

Discordo da doutrina e da jurisprudência que ainda trata a relação paterno-filial como posse de estado de filho e, sobretudo, quando faz analogia entre a posse de estado de filho e a posse dos direitos reais, por várias razões:

- a primeira, não se trata de posse de estado de filho, mas, sim, de estado de filho afetivo, cujo vínculo entre pais e filho, com o advento da Constituição Federal de 1988, não é de posse e de domínio, e sim de amor, de ternura, na busca da felicidade mútua, em cuja convivência não há mais nenhuma hierarquia. Enquanto a família biológica navega na cavidade sangüínea, a família afetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção, (re)velando o mistério insondável da filiação, engendrando um verdadeiro reconhecimento do estado de filho afetivo;

- a segunda, equiparar a posse dos direitos reais à de estado de filho, inclusive com os mesmos requisitos do art. 550 do Código Civil, 47 é demonstrar o firme propósito de manter a antiga coisificação do filho, a mesma estrutura familiar do medievo, da família patriarcal, principalmente da família romana, em que o pai detinha a posse e a propriedade do filho, da mulher e dos escravos, com poderes sobre eles de vida e de morte;

- a terceira, a família afetiva está inundada pelos mesmos propósitos da família biológica, ou seja, "a verdadeira paternidade decorre mais de amar e servir do que de fornecer material genético". 49 É uma imagem bifronte, uma refletindo a outra, com comunhão plena de vida entre ambas as famílias, porque a família sociológica é constituída à imagem e semelhança da família genética e vice-versa, porquanto o que importa é a manutenção contínua dos vínculos do amor, carinho, desvelo, ternura, solidariedade, que sustentam, efetivamente, o grupo familiar. É por isso que se deve ter muito cuidado ao falar em Direito de Família, especialmente quanto à filiação, porque "atinge a pessoa nas fímbrias do seu coração e mexe com o que ela tem de mais íntimo e de mais precioso em sua vida. É um terreno que devemos sempre percorrer com extraordinário cuidado, como quem estivesse mexendo em cristais, para não criar fraturas", pois a figura paterna não é apenas genitor, mas, principalmente, protetor, amigo, pai, como, por exemplo, quando chega a casa, à noite, cansado e com fome, mas, antes de se alimentar ou descansar, "senta-se na beira da caminha, para contar mais um capítulo de uma história inventada, que não termina jamais, e que alimenta a fantasia de sua criança, numa linguagem de amor que ela entende bem";

- a quarta, no estado de filho afetivo devem ser cumpridas as mesmas condições do estado de filho biológico, já que a filiação é uma imagem refletida entre pais e filho, sem discriminação, sem identificar-se com a voz do sangue ou a voz do coração. Segundo anotava CLÓVIS BEVILACQUA, no ano de 1943, quando uma pessoa, "constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu". E isso não é posse, mas, sim, a edificação do estado de filho, do estado de afeto.

Com isso, pode-se traçar paralelo entre algumas matérias do Direito, para comprovar que não existe qualquer analogia entre domínio, posse e estado de filho, na medida em que o afeto está para o Direito de Família assim como a posse e o domínio estão para o Direito das Coisas; o liame contratual para o Direito Obrigacional; o fato delituoso para o Direito Penal; o vínculo laboral para o Direito do Trabalho, e o tributo para o Direito Tributário.

4 - Posse de Direitos Reais e Estado de Filho Afetivo

Fazendo analogia do estado de filho afetivo com a posse de direitos reais, JULIE CRISTINE DELINSLI afirma que, em qualquer caso, "a posse é a manifestação exterior, visível da fruição de determinadas qualidades e atributos da pessoa; serve para atribuir um estado cuja comprovação não é possível por outro modo". No mesmo contexto, explica a autora que o estado de filho também pode ser provado pela teoria da aparência, porquanto "é comum apresentar a 'posse de estado' como uma versão da aparência, pois, sem dúvida, as duas noções são similares". 53 Ou seja, para a maioria da doutrina, "a posse do estado de filho é uma das manifestações da aparência na esfera jurídica".

Apadrinha esse pensamento JOSÉ BERNARDO RAMOS BOEIRA ao certificar que, assim como a posse tem em seus elementos – corpus e animus -, a "posse de estado" se caracteriza por convergência do tratamento e da reputação de filho, e "o desenvolvimento do papel da 'posse de estado', sobretudo na legislação francesa, é acompanhado de uma modificação importante: – a 'posse de estado' não é somente 'uma prova do estado', mas também pode ser, às vezes, a condição de sua existência".

Incorre na mesma argumentação JACQUELINE FILGUERAS NOGUEIRA, no sentido de que "existe certa semelhança em relação aos elementos caracterizadores da 'posse de estado', tratamento e fama, e os elementos essenciais da posse, corpus e animus. O corpus, da teoria objetiva de IHERING, que é relação exterior que revela aparência de propriedade, equivaleria à fama, sendo esta considerada a relação exterior que revela uma relação de paternidade ou aparência de paternidade. E o animus, que é a vontade de proceder como normalmente procede o proprietário, corresponderia ao tratamento, sendo a vontade de tratar a criança como trataria um pai. Mas o animus, em relação à 'posse de estado', se adapta à teoria subjetiva de SAVIGNY, já que o elemento 'vontade' é necessário e característico da 'posse de estado'".

Não afianço essa doutrina de equiparação do estado de filho afetivo a posse dos direitos reais, pois representa a perpetuação da coisificação do filho, conforme fundamentos lançados no item 2 deste capítulo. Entretanto, para não ser acusado de fugir ao debate, entendo que na investigação de paternidade socioafetiva não basta a prova da aparência do estado de filho, mas, sim, a busca intransigente da verdadeira paternidade e maternidade sociológicas. Ora, se na investigatória de paternidade biológica exige-se a verdade da filiação, inclusive com a produção do exame genético em DNA, também deve ser obrigatória a mesma verdade na investigação da paternidade socioafetiva, já que na Constituição Federal de 1988 residem apenas essas duas verdades da filiação: biológica e sociológica.

Por isso, sustento a idéia de que não se aplica a teoria da aparência na ação de investigação de paternidade e maternidade sociológica. Nesse caso, em tese, deve ser aplicada a teoria da evidência, para que a decisão judicial declare a verdadeira, e não a fictícia, filiação socioafetiva, isso porque a maior Carta Política e Jurídica do País de 1988 afastou do ordenamento jurídico a presunção, a aparência, a ficção, a paternidade e maternidade meramente judicial, acolhendo tão-somente duas verdades: biológica e sociológica (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º, da CF). Em matéria de filiação, a decisão judicial deve estar mais próxima da verdade biológica ou sociológica, afastando-se, em decorrência, cada vez mais da verdade meramente formal, ficção jurídica. Pode ser alegado que o conceito de verdade é difícil de ser compreendido, mas, segundo ROBERT ALEXY, "a verdade pode ser definida como uma correspondência entre a sentença e o fato". Para a teoria da verdade ser adequada, prossegue o autor, ela tem de fazer justiça ao que PATZIG denomina de "dualidade interna", no conceito de fato, "significando que os fatos, por um lado, dependem da linguagem, enquanto que, por outro, o valor de verdade das sentenças depende dos fatos".

5 - Elementos que Caracterizam o Estado de Filho Afetivo

A idéia de estado de filho afetivo já era conhecida antes mesmo que os países civilizados organizassem o sistema de registro de nascimentos, que, inicialmente, era oficializado nas paróquias, sob o comando do Direito Canônico. Bem mais tarde, noticia MARIA CLÁUDIA CRESPO BRAUNER, com as primeiras codificações, a contar de 1800, e a institucionalização do matrimônio, "surgiu a discriminação dos filhos nascidos de relações não formalizadas, sendo que a incidência da presunção de paternidade legal desconsiderou o elemento fático da filiação, estabelecendo somente o critério legal para determinação da filiação". O reconhecimento da filiação, continua a autora, "passou a ser um ato formal, e a simples posse de estado de filho não servia para demonstrar a filiação e, muito menos, para criar o vínculo legal entre pai e filho".

Três são os requisitos do estado de filho afetivo: a nominatio, a tratactus e a reputatio, ou seja, "que a pessoa tenha sido tratada como filho do indigitado pai e que tenha, como tal, atendido à manutenção, à educação e à colocação dela; que a pessoa tenha sido constantemente considerada como filho nas relações sociais". A nominatio, que é o nome, é ter o filho o apelido do pai; a tractatus é ser tratado e educado como filho; a reputatio é ser tido e havido por filho na família e na sociedade em que vive. Isso significa que o nome é o uso constante do apelido (sobrenome) da família do pai afetivo; o tratamento decorre do filho ser criado, educado, tido e apresentado à sociedade como filho; a fama ou reputação é a circunstância de ser sempre considerado, na família e na sociedade, como filho.]

Porém, a doutrina, em sua maioria, dispensa o requisito do nome, bastando a comprovação dos requisitos do tratamento e da reputação, visto que, no caso de uma criança, é ela quase sempre identificada pelo seu prenome, pelo que "até mesmo a posição social e o grau de educação das pessoas envolvidas são fatores que se deve considerar para a configuração e tipificação desses dois elementos essenciais". O tratamento é o elemento clássico de maior valor, certifica JACQUELINE FILGUERAS NOGUEIRA, porquanto reflete a conduta que é dispensada ao filho, garantindo-lhe o indispensável à sobrevivência, como a manutenção, a educação, a instrução, a formação dele como ser humano. Já o terceiro elemento, a fama, "é a situação de uma criança ter sempre sido considerada pela sociedade como filho 'legítimo' daqueles que a criam; é a notoriedade ou reputação social desta situação".

Elucidativo julgamento foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, em 01.06.1988, no sentido de que "o tratamento como filho envolve a reputação de filho ser. Um pai pode tratar um filho de muitos e variados modos: cuidar da alimentação, do vestuário e do calçado; proporcionar a instrução possível; procurar apagar as tristezas e colaborar nas alegrias (...). Dir-se-á que, em termos afetivos, dificilmente se encontrará expressão mais eloqüente de tratamento do que o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai".

A reputação e o tratamento de filho, segundo EDUARDO DOS SANTOS, dependem da personalidade de cada pessoa, do seu temperamento e caráter, da sua categoria e condição social, situação econômica e familiar, grau de educação e instrução e hábitos, isso porque se pode chamar alguém de filho sem lhe dar, entretanto, o tratamento de filho. Para o jurista, o tratamento de filho é (des)velado através de duas condutas: a primeira, pelos atos de proteção e amparo econômico (sustento, vestuário, educação ou colocação); a segunda, pela afetividade por parte dos pretensos pais (carinho, ternura, desvelo, amor, respeito). Em momento seguinte, o articulista atesta que pode haver reputação sem tratamento e tratamento sem reputação, mas "o tratamento é o melhor índice de reputação", que reclama, segundo o autor, atos inequívocos, públicos e de certa continuidade. Não basta a prática de um ato isolado, com sentido incerto, isto é, "não são suficientes meros fatos episódicos, sem relevância. Exige-se reiteração, regularidade e seqüência. Os atos equívocos, clandestinos, esporádicos, avulsos e isolados não revelam tratamento".
O requisito da reputação merece cuidado especial, alerta EDMILSON VILLARON FRANCESCHINELLI, não basta a prova do 'diz-se', o 'consta', o 'é voz pública', o 'ouviu dizer', pois os boatos, a má língua, a bisbilhotice malévola não constituem a reputação, que deve "basear-se em fatos concretos, tem de ser uma prudente, séria e lógica ilação dos fatos que constituem a reputação e tratamento como filho pelos supostos pais do vindicador do estado". Além disso, segundo o autor, a reputação deve ser contínua, na medida em que não servem de prova os fatos intermitentes, avulsos, sem concatenação e seqüência lógica. Embora comprovados os requisitos de tratamento e de reputação, a doutrina tem tido dificuldades em apontar um lapso prazal a indicar a canonização do estado de filho afetivo. Concordo, por isso, com LUIZ EDSON FACHIN, quando afirma que "diante do caso concreto, restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência, ou não, de posse de estado, o que não retira desse conceito suas virtudes, embora exponha sua flexibilidade. E isso há de compreender-se: trata-se de um lado da existência, de um elemento de fato, e é tarefa difícil, senão impossível, enjaular em conceitos rígidos a realidade da vida em constante mutação".


O Jurista português GUILHERME DE OLIVEIRA diz que não sabe explicar a razão de os legisladores franceses, luxemburgueses e espanhóis terem fixado, respectivamente, o prazo de duração mínimo do estado de filho afetivo (posse de estado de filho) em dez, três e quatro anos, isso porque "o estabelecimento de um prazo, em matéria sem antecedentes legais é com certeza um passo arbitrário", mas, de acordo com o autor, nota-se "uma tendência para defender a estabilidade do vínculo ao fim de prazos curtos", conclui o autor.

Recordo as palavras de GUILHERME DE OLIVEIRA, porque a atribuição de sentido a ser realizada, quando da outorga da paternidade e/ou maternidade biológica ou sociológica, deve passar, necessariamente, por uma visão garantista/garantidora do Direito de Família e do processo. Ora, se nos planos legislativo e hermenêutico é possível estabelecer vários prazos para o reconhecimento do estado de filho afetivo, a opção do operador do Direito deve levar em conta uma visão utilitarista do processo de família, isto é, o mínimo de sacrifício para os pais e o máximo de benefício para o filho (princípios da prioridade e da prevalência absoluta). Por isso, a necessidade de ser examinada a singularidade do caso, pois, como refere LENIO LUIZ STRECK, citando HEIDEGGER, 73 "tomar aquilo que 'é' por uma presença constante e consistente, considerado em sua generalidade, é resvalar em direção à metafísica". Aduz, ainda, que, para a Nova Hermenêutica, de vertente heideggeriana-gadameriana, "interpretar é produzir/agregar/adjudicar sentido ao texto, que passará a ser norma a partir da interpretação. Não pode haver hermenêutica sem relação social". Por fim, o autor certifica que o texto deve ser interpretado pelo jurista não com pensamento voltado na lei e nem captando o seu sentido, mas, sim, "mergulhado no rio de sua história, deslizando até o presente de sua aplicação, ou seja, não é possível interpretar sem ter em conta um caso concreto (nas suas especificidades)".

Com base nessa idéia, é possível afirmar que, quando o legislador ou o pensamento dogmático do Direito estabelecem certo lapso prazal para a configuração do estado de filho afetivo, estão, na verdade, ocultando, escondendo ou anulando, ao invés de mostrar, (des)velar a verdadeira paternidade e maternidade, que somente pode ser vislumbrada na singularidade do caso.

6 - Paternidade e Maternidade Socioafetiva

Na leitura de JOÃO BAPTISTA VILLELA, o reconhecimento de filho tem "todo aquele, e somente aquele, a quem falte o pai juridicamente estabelecido. Não o tem, portanto, em princípio, aquele a quem a condição de havido do casamento já lhe dá o pai". Essa afirmação me faz lembrar um acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que foi defendida a paternidade sociológica, nos seguintes termos: "Um coito apenas determina para a vida inteira um parentesco, um coito entre pessoas que, às vezes, só tiveram aquele coito e nada mais! Desprezam-se anos e anos de convivência afetiva, de assistência, de companheirismo, de acompanhamento, de amor, de ligação afetiva. Daí não se tratar de um rematado absurdo a cogitação de que se pudesse pretender pôr limites à investigação da paternidade biológica, porque, quando se permite indiscriminadamente esta pesquisa, se está jogando por terra todo o prisma socioafetivo do assunto, e isto vale também para a paternidade biológica, não só para a adotiva. O pai e a mãe criaram um filho, com a melhor das criações possíveis, com todo o amor que se podia imaginar; passam-se os anos; 40 anos depois, resolve o filho investigar a paternidade com relação a outra pessoa, esbofeteando os pais que o criaram por 40 anos! E normalmente esses pedidos são tão despropositados que, falando em tese, muitas vezes têm a ver apenas com a cobiça, descobrem que o pai biológico tem dinheiro, vai herdar, então despreza os pais que o criaram, que deram toda a educação, quer adotivos, quer biológicos – tidos como biológicos -, e vai procurar o outro pai que teve o tal de coito, uma vez na vida".

A filiação socioafetiva pode até nascer de indício, instrui EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, "mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento. Revela o pai que ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no ambiente social". O pai – prossegue – que alimenta o filho "expõe o foro íntimo da paternidade, proclamada visceralmente em todos os momentos, inclusive naqueles que toma conta do boletim e da lição de casa. É o pai de emoções e sentimentos, e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos". A paternidade socioafetiva é a única que garante a estabilidade social, edificada no relacionamento diário e afetuoso, formando uma base emocional capaz de lhe assegurar um pleno e diferenciado desenvolvimento como ser humano, certifica JOSÉ BERNARDO RAMOS BOEIRA, porque "ter um filho e reconhecer sua paternidade deve ser, antes de uma obrigação legal, uma demonstração de afeto e dedicação, que decorre mais de amar e servir do que responder pela herança genética".

Na maioria dos casos, a filiação se deriva da relação biológica, mas "ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue". Na Constituição Federal de 1988 não reside sequer um dispositivo legal que privilegie a paternidade genética em detrimento da socioafetiva, ou que tenha cobrado do registro de pessoas naturais qualquer fidelidade aos fatos da biologia. 80 Esse entendimento, porém, é podado por julgado catarinense, nos termos: "Se tanto a família adotiva como a biológica tem condições de cuidar do infante, deve prevalecer a última, porquanto o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente prioriza a família biológica, estabelecendo que a criança deverá ser criada pela família substituta apenas em situações excepcionais".

Vê-se, pois, que há resistência na doutrina e na jurisprudência em igualar as filiações biológica e sociológica, o que, até certo ponto, pode ser compreendido com a leitura de ENGELS, que anota as dificuldades nas mudanças do parentesco e da família antiga, porquanto, para ele, a família é o elemento ativo, que não permanece estacionada, passando de uma forma inferior a uma forma superior, à medida em que evolui a sociedade. Já os sistemas de parentesco, continua o autor, "são passivos; só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente".

Portanto, parafraseando ENGELS, a filiação afetiva é o elemento ativo, não permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Já a filiação consangüínea (biológica, genética) é passiva, e só depois de longos intervalos registra os progressos feitos pela filiação sociológica, e não sofre uma modificação substancial senão quando a filiação social já se modificou radicalmente. A essa situação fática e jurídica denomina-se paradigma da perfilhação biológica, que está em momento de transição com a filiação sociológica, e toda "transição para um novo paradigma é uma revolução científica", pontifica THOMAS S. KUHN, não se caracterizando um processo cumulativo, advindo da articulação do velho paradigma, mas, sim, um redimensionamento, uma relativização "da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como de seus métodos e aplicações". Durante o período de transição, continua KUHN, ter-se-á grande coincidência, inobstante incompleta, entre as questões que podem ser solucionadas pelo "antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. Haverá igualmente uma diferença decisiva no tocante aos modos de solucionar os problemas. Completada a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção na área de estudos, de seus métodos e de seus objetivos".
Está ocorrendo uma substituição do predomínio material por elementos afetivos, em franca negação do modelo familiar Romano, atesta EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, "resultando disso que o exercício da paternidade quer, agora, uma dimensão mais ampla, que envolve, especialmente, o afetivo". Logo, afirma o escoliasta, "não basta ser genitor, nem educador, nem capaz de transmitir nome e bens, mas e sobretudo, o pai é aquele que estabelece um profundo vínculo amoroso com o filho". Nesse sentido, o autor historia que há duas verdades em matéria de perfilhação: a verdade biológica – a dos laços de sangue – e a verdade do coração – dos sentimentos -, esta é "a que corresponde à filiação querida, desejada, vivenciada no dia-a-dia de uma existência. A inserção da noção de paternidade responsável (art. 226, § 7º) pôs um fim, ao menos formalmente, à insustentável supremacia da paternidade biológica". Em momento seguinte, conclui que "o direito da filiação não é somente o direito da filiação biológica, mas é também o direito da filiação vivida', ou, como bem asseverou GERARD CORNU, 'o direito da filiação não é somente um direito da verdade. É também, em parte, um direito da vida, do interesse da criança, da paz, das famílias, das afeições, dos sentimentos morais, da ordem estabelecida, do tempo que passa ...".

Também dignos de nota são os argumentos de JOÃO BAPTISTA VILLELA, ao testificar que "ser pai ou ser mãe é, em larga medida, saber ouvir". Depois, invoca DAVID COOPER, "quando punha a nu os equívocos da família assentada na consangüinidade, pois 'o sangue é mais espesso que a água apenas porque se constitui na corrente energizadora de uma certa estupidez social". Nas palavras de LUIZ EDSON FACHIN, no fundamento do estado de filho afetivo é possível encontrar a genuína paternidade, "que reside antes no serviço e no amor que na procriação. Esse sentido da paternidade faz eco no estabelecimento da filiação e, por isso, reproduzindo a modelar frase do professor JOÃO BAPTISTA VILLELA, é possível dizer que, nesse contexto, há um nascimento fisiológico e, por assim dizer, um nascimento emocional".

Nessa mesma ordem de defesa em favor da paternidade e maternidade sociológica, a referência de GUILHERME DE OLIVEIRA, ao se manifestar sobre a filiação francesa, reconhecendo que o fato de a família viver como se o vínculo biológico existisse cria "uma comunidade psicológica que pode ser tão forte como a comunidade de sangue. Em suma, tratou-se de dar relevância à verdade sociológica da filiação, de guardar a paz das famílias que assente na comunhão filial duradoura".

A função de protetor, de pai social, no entender de ALMEIDA JÚNIOR, independeu, a princípio, da de genitor, de pai biológico, segundo demonstram os estudos glóticos. Nesse ponto, salienta o autor, a informação de MAX MÜLLER, nos termos: "Pai é derivado da raiz PA, que não significa gerar, mas proteger, amparar, nutrir. O pai como procriador era chamado, em sânscrito, ganitar, mas como proteger e amparo do filho era chamado pitar. Eis porque as duas expressões são empregadas juntas, nos Vedas, para exprimir a idéia completa de pai". A seguir, o articulista atesta que, primitivamente, no conceito social de paternidade não se incluía, necessariamente, o elemento biológico, o que somente veio a ocorrer mais tarde, por dois motivos psicológicos: "a) o ciúme, passando-se a exigir a exclusividade; b) o narcisismo, para rever-se no produto, levando o homem a exigir, como condição para tornar-se pai social, a convicção da paternidade biológica".

A verdadeira filiação, na mais moderna tendência do Direito Internacional, "só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independente da origem biológico-genética". Somente a doutrina e a jurisprudência tradicionais não aceitam a igualdade entre a filiação biológica e sociológica. A intolerância jurídica e social é de tal envergadura que alguns juristas profetizam que os direitos somente podem ser outorgados ao filho aprisionado pelo sangue, esquecendo-se de que, enquanto a família biológica navega na cavidade sangüínea, a família afetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo cordão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção, (des)velando o mistério insondável da filiação, engendrando o reconhecimento do estado de filho afetivo.
Não se pode arquitetar diferença jurídica entre filho biológico e afetivo, porquanto, em ambos os casos, são reconhecidos como filhos, os quais, perante a Constituição Federal de 1988, são iguais em direitos e obrigações. Não há diferença de criação, educação, destinação de carinho e amor entre os filhos sociológicos e biológicos, não se podendo conferir efeitos jurídicos desiguais em relação a quem vive em igualdade de condições, sob pena de revisitar a odiosa discriminação entre os filhos, o que seria, sem dúvida, inconstitucional, à medida que "toda a filiação é adotiva, porque é necessário o ato de aceitação da criança como filho para que exista realmente essa vinculação afetiva entre mãe e filho ou pai e filho". Nesse mesmo sentido, o jurista português GUILHERME DE OLIVEIRA, citando CARBONNIER, sentencia que "toda a filiação legal contém, por isso, uma parte de adopção", e acrescenta que essa lapidar frase é hoje repetida por juristas de vários países, a proteger a família sociológica.
Os verdadeiros pais são aqueles que amam e dedicam sua vida a uma criança, "pois o amor depende de tê-lo e se dispor a dá-lo. Pais, onde a criança busca carinho, atenção e conforto, sendo estes para os sentidos dela o seu 'porto seguro'. Esse vínculo, por certo, nem a lei nem o sangue garantem". Com razão, assim, EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, ao dizer que houve a "desencarnação" da família, consistente na "substituição do elemento carnal ou biológico, pelo elemento psicológico ou afetivo", ou seja, "o que domina a evolução da família é a tendência inexorável de se tornar cada vez menos organizada e hierarquizada, priorizando cada vez mais o sentimento e a afeição mútua". Segundo a leitura de LUIZ EDSON FACHIN, não são os laços bioquímicos que indicam a figura do pai, mas, sim, o cordão umbilical do amor, "o desvelo e o serviço com que alguém se entrega ao bem da criança. A verdadeira paternidade não é um fato da biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen".

Em vista do Texto Constitucional de 1988, a finalidade da família é a concretização, a refundação do amor e dos interesses afetivos entre os seus membros, pois "o afeto, como demonstram a experiência e as ciências psicológicas, não é fruto da origem biológica. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência, e não do sangue". Atualmente, promove-se a (re)personalização das entidades familiares e o cultivo do afeto, a solidariedade, a alegria, a união, o respeito, a confiança, o amor, enfim, "o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas".

Na legislação comparada pode ser citado o art. 334-9 do Código Civil francês, com a redação dada pela Lei de 3 de janeiro de 1972, dispondo que "todo reconhecimento é nulo, todo o pedido de investigação inadmissível quando o filho tenha filiação legítima já estabelecida pela posse do Estado". É uma Lei que prioriza os interesses do filho e, embora valorando a verdade biológica, traz inserida também uma influência de cunho sociológico, caracterizado pela verdade afetiva, aduz JACQUELINE FILGUERAS NOGUEIRA. Ainda que, desse modo, não seja possível estabelecer filiação quando pendente o estado de filho afetivo, aduz ainda a autora, cuja reforma legislativa "abriga a paternidade que decorre da procriação, isto é, a verdade biológica; já, num segundo momento, deslumbra-se que não deve ser única, mas, contrariamente, deve vir acompanhada de um valor maior, qual seja, o afetivo". Na Alemanha é dito que toda a criança tem o direito de ver estabelecida sua filiação paterna. Em caso de inseminação artificial heteróloga, aqueles tribunais atribuem a paternidade ao pai biológico, isto é, "ao doador, que não pode ficar totalmente anônimo", noticia EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE. Na França – continua o autor – preserva-se o anonimato do doador, o que "significa reconhecer que, nesse País, se optou em favor da prevalência da vontade como valor fundador da filiação. Isto é, enquanto na Alemanha se privilegiou a mera paternidade biológica, na França, é a paternidade afetiva (ou social) que se impôs como regra".

O Brasil deve acolher a legislação francesa, proibindo-se o reconhecimento da filiação biológica quando estabelecida a filiação afetiva. Discordo, porém, dessa legislação alienígena ao não permitir a flexibilização da filiação afetiva para investigar a paternidade ou a maternidade para alguns efeitos jurídicos, vez que o filho natural ou o medicamente assistido, seja biológico, seja socioafetivo, tem o direito constitucional de conhecer a sua ancestralidade, que faz parte do direito à cidadania e à dignidade humana. Com a formatação da igualdade constitucional da filiação, a não-concessão ao filho sociológico do direito de investigar a paternidade e maternidade biológica ocasionaria um injustificável retrocesso social dos direitos fundamentais. Concordo que a filiação afetiva (posse de estado de filho) é irrevogável, assim como o é a adoção, mas não se pode proibir que o filho conheça seus pais biológicos, até porque, segundo o Superior Tribunal de Justiça, "o filho pode ter respeitável necessidade psicológica de conhecer os verdadeiros pais". Aliás, nesse sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA lembra que "é conhecido um trabalho feito na Escócia, depois de 44 anos de publicidade dos registos, que mostra a vantagem psicológica de saber as origens genéticas".

Por isso, para o Brasil, deve ser aplicada parte da legislação alemã e parte da francesa: a) a alemã, porque todo filho, em vista da unidade da filiação e a conseqüente proibição de discriminação, independentemente de sua origem, tem o direito de investigar a paternidade biológica, inclusive contra o(a) doador(a) de sêmen ou de óvulo, na adoção, na inseminação artificial, na gestação substituta, na clonagem, enfim, em qualquer espécie de reprodução humana natural e medicamente assistida, já que faz parte dos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, alçados a fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito; b) a legislação francesa também deve ser recepcionada, na medida em que, na descoberta da verdade científica, devem ser perseguidos os princípios da prioridade e prevalência absoluta dos interesses da criança, pelo que, nesse amplo conceito, a verdade afetiva sobrepuja a verdade biológica.

Assim, por exemplo, se estabelecida a filiação socioafetiva, tanto na reprodução humana natural quanto na medicamente assistida, ao filho assiste o direito de ajuizar ação de investigação de paternidade biológica, postulando apenas dois efeitos jurídicos: 1) para observar os impedimentos matrimoniais; 2) para preservar a saúde e a vida do filho ou dos pais biológicos, em caso de doenças genéticas graves, pois, em certas circunstâncias, pode-se tornar indispensável a revelação do terceiro doador de sêmen ou óvulo, "para se evitar incesto entre filhos biológicos de uma mesma origem e, sobretudo, para se evitar propagação de doenças genéticas".

7 - Breve Abordagem Psicanalítica da Filiação

Em reportagem sobre a família portuguesa, foi dito que a ausência do pai na família gera, na maioria das vezes, o aumento da delinqüência infantil e juvenil, do consumo de drogas e do insucesso escolar. Esse abandono paterno é provocado principalmente por um problema cultural de nossos dias: o individualismo, tendo, como conseqüência, a rejeição das responsabilidades e dos compromissos, o que é mais visível no homem, pois não tem uma ligação imediata à criança. A reportagem também afirma que no livro "Fatherless America", de DAVID BLANKENHORN, o autor chegou à conclusão de que a ausência do pai nas famílias norte-americanas "está directamente relacionada com o aumento de divórcios e de mães solteiras. Isto tornou-se num problema social que, segundo BLANKENHORN, fez disparar as taxas de delinqüência juvenil".

Ao se buscar a Justiça, o Direito deve se apropriar dos conhecimentos da Psicanálise, da História, das Religiões, enfim, a vida nos ensina que o pai tem função fundamental no recanto da família, comenta RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, citando SIGMUND FREUD, e que, nas tribos primitivas, o pai era assassinado pelos próprios filhos para a refeição totêmica, tornando-se o pai, assim, "mais poderoso do que jamais fora em sua vida, pois ele passa a ocupar um lugar simbólico: passa a ser um significante". E isso ocorre, segundo o autor, porque o pai ocupa o lugar da lei, isto é, a lei é representada pela figura do pai, que "possibilita a passagem da natureza para a cultura, através de um interdito proibitório na relação mãe-filho".

Quando nasce uma criança, comenta o psicanalista CÉLIO GARCIA, o pai comparece e a registra em seu nome: "eis o nome do pai. Até então o pai é incerto. Pater sempre incertus est dizem os comentadores da lei. O pai, nesse caso, é uma função, nada mais; esvazia-se assim a lenda e seu aparato que idealizava a figura do pai". Depois, o autor atesta que a mãe fala no pai quando faz a habitual afirmação: "quando teu pai chegar, você vai ver! A fala da mãe sobre o pai é decisiva; esta instaura o terceiro termo marcador de uma instância outra, estranha à fusão mãe/filho. A instância outra a que me refiro é de ordem simbólica". A carência do pai não está ligada a sua presença, ou não, porquanto ele pode estar presente mesmo na ausência, pontifica FERNANDA OTONI DE BARROS, que ainda indaga: quem já não passou pela experiência de perder o pai e, nem por isso, perder a sua palavra? Ou seja, "a carência se coloca aí, na dimensão simbólica, na insuficiência da sua palavra". Depois, a articulista diz que, de acordo com SIGMUND FREUD, o ser humano instala o pai no centro do complexo de Édipo, pois "ele é quem abre sua entrada para o sujeito e também quem tem a chave de saída. É com ele que o sujeito se identifica, é ele quem aponta a mãe como objeto de desejo e quem marca sua proibição. É ele quem garante o nome das coisas e a sua falta". Conclui a autora, atestando que "o nome do pai deve receber o tratamento de uma instituição; como LEGENDRE dizia, instituir o nome do pai para o filho é uma função jurídica muito importante no processo de filiação, uma vez que 'instituir é fabricar o traçado escrito', é legitimar o nome do pai".

A família não é base natural, e sim cultural da sociedade, assegura RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, com base nas pesquisas de JACQUES LACAN, não se constituindo apenas por um homem, mulher e filhos, mas, sim, de uma edificação psíquica, em que cada membro ocupa um lugar/função de pai, de mãe, de filho, sem que haja necessidade de vínculo biológico. Prova disso, evidencia o autor, é o fato de que "o pai ou a mãe biológica podem ter dificuldade, ou até mesmo não ocupar o lugar de pai ou de mãe, tão necessários (essenciais) à nossa estruturação psíquica e formação como seres humanos". Contudo, essa fundamental função paterna não precisa ser ministrada, necessariamente, pelo pai biológico, e sim por um pai (afetivo), continua o autor, na medida em que "o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá o seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção..., enfim, aquele que exerce uma função de pai".

O novo milênio faz emergir a significação enigmática do "ser" pulsional e social (simbólico), afirma JEANINE NICOLAZZI PHILIPPI, acrescentando que a Psicanálise aposta na necessidade de edificação, "ainda que artificial (como tudo o que é da cultura), de uma vontade partilhada, que possibilite uma 'fraternidade discreta', ao redefinir, a partir do lugar e da função do sujeito, o estatuto da lei...".

Destarte, está na hora de ser relativizado o paradigma da paternidade e da maternidade biológico, porque o filho precisa da figura de um pai, e não tão-somente de um genitor, para contribuir no desenvolvimento intrapsíquico, na medida em que "faz parte da natureza humana o desejo de ser amado e protegido". Contudo, embora deva ser idolatrada a filiação afetiva, já que uma das partes mais importantes de nossas vidas e constante do Texto Constitucional (art. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º, da CF), não se pode desdenhar o liame biológico da relação paterno-filial, de vez que, da afetividade, que também deve estar presente no liame biológico, "surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológico, ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes". É dizer, o elemento fundante na identificação da verdadeira e única filiação "é o relacionamento socioafetivo entre pais e filhos, portanto necessário se faz o reconhecimento do afeto como valor jurídico". Aliás, sequer haveria necessidade de lançar os fundamentos jurídicos para justificar que numa família se respira o afeto, o amor, o desvelo, "uma vez que tal noção é um elemento essencial nas relações interpessoais que a formam".

8 - Irrevogabilidade da Filiação Socioafetiva

Conforme inteligência do art. 48, do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção é irrevogável. Considerando que a Constituição Federal engendrou a unidade da filiação, assim como a irrevogabilidade da adoção, que é uma forma de filiação socioafetiva (em suas várias modalidades, conforme consta do início deste capítulo), conclui-se que a filiação sociológica também é irrevogável. Isso porque, além de ter assento constitucional (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º), devem ser observados os princípios da prioridade e da prevalência absoluta dos interesses da criança e do adolescente, conforme art. 227, cabeço, da Carta Magna, e arts. 1º, 6º, 15 e 19, entre outros, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No art. 1º da Lei nº 8.069/90 (ECA) é acalentada a incidência dos princípios da proteção integral à criança e ao adolescente, demonstrando, com isso, que "se o século XX foi das mulheres, o século XXI será indiscutivelmente das crianças". No art. 6º do mesmo diploma legal é dito que, na interpretação dessa Lei, "levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento". Comentando esse artigo, LIMONGI FRANÇA assevera que a expressão fins sociais significa que a "aplicação da lei seguirá a marcha dos fenômenos sociais, receberá, continuamente, vida e inspiração do meio ambiente e poderá produzir a maior soma possível de energia jurídica". No art. 15 do ECA é garantido o "direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis", indicando que o legislador pretende impedir que, "em nome dos direitos subjetivos conferidos aos pais, pudessem ser sacrificados os valores atinentes à tutela da personalidade da criança e do adolescente, alvo de atenção específica pelo ordenamento civil-constitucional".

A doutrina e a jurisprudência, paulatinamente, estão reconhecendo a irrevogabilidade da filiação sociológica. Com efeito, para ZENO VELOSO, permitir que o pai, a seu bel-prazer, pudesse, a qualquer tempo, desfazer o reconhecimento da paternidade de um filho seria uma extremada injustiça, caracterizando um gesto "reprovável, imoral, sobretudo se o objetivo é fugir do dever de alimentos, ou para evitar o agravante de parentesco num crime, por exemplo". Com relação ao direito comparado, ZENO VELOSO faz as seguintes ponderações: a) na Argentina, quem reconhece a paternidade não pode impugná-la, já que irrevogável, mas pode sustentar a nulidade do ato, se houve algum vício do consentimento; b) na jurisprudência européia, sente-se um movimento para evitar ou, pelo menos, atenuar a possibilidade de o declarante impugnar a paternidade; c) na França, desde 1972, com a modificação do art. 339, alínea 1, do Código Civil, também não é viável a impugnação da filiação, caso pendente o estado de filho afetivo por dez anos; d) na Suíça, o art. 260, alínea 2, do Código Civil, não admite a revogação do reconhecimento da paternidade, salvo se provar que agiu sob a coação, ou que incidiu em erro.

Com razão, pois, JOÃO BAPTISTA VILLELA, ao proclamar que um reconhecimento de filho, mesmo que efetuado por equívoco, (...) "não se combate com o manejo da ação de falsidade do registro, senão com ação de nulidade por erro na declaração unilateral não-receptícia de vontade". E, segundo CRISTIAN FETTER MOLD, nem mesmo "uma simples 'pressão psicológica', de nenhum modo, pode ser equiparada a uma 'coação', o que não dá azo à desconstituição do registro, uma vez que o reconhecimento é irrevogável". Já para a legislação portuguesa, lembra EDUARDO DOS SANTOS, "a posse de estado constituída é, em princípio, irretratável. Nisto, pode-se dizer, é pacífica a jurisprudência".

Quanto ao reconhecimento voluntário da paternidade, a jurisprudência também entende ser irrevogável a filiação socioafetiva, uma vez configurada a posse de estado de filho, o que se haure do seguinte julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos seguintes termos:

"Uma vez aperfeiçoada, torna-se irretratável a declaração de vontade tendente ao reconhecimento voluntário de filiação. A invalidação dar-se-á apenas em razão de dolo, erro, coação, simulação ou fraude. Se foi o próprio recorrido a pessoa que compareceu ao cartório e fez as declarações de registro, não pode ela agora procurar anulá-la para beneficiar-se da anulação, principalmente em prejuízo de quem não participou do ato e nem podia participar, por ser menor de idade. Durante muitos anos de convivência entre a apelante e o apelado, este comportou-se como um pai verdadeiro, assumindo a recorrente como filha, implementando faticamente a declaração jurídica afirmada no registro civil. A declaração de vontade tendente ao reconhecimento voluntário da filiação, admitindo alguém ser o pai ou a mãe de outra pessoa, uma vez aperfeiçoada, torna-se irretratável. A exemplo do que ocorre com os demais atos jurídicos, a invalidação pode verificar-se em razão de erro, dolo, coação, simulação ou fraude. É de sabença geral que ninguém pode alegar, em seu benefício, a própria torpeza."

A esse respeito, foi prolatado acórdão no Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa foi edificada nos seguintes termos:

"As normas jurídicas hão de ser entendidas tendo em vista o contexto legal em que inseridas, e considerando os valores tidos como válidos em determinado momento histórico. Não há como interpretar-se uma disposição ignorando as profundas modificações por que passou a sociedade, desprezando os avanços da ciência e deixando de ter em conta as alterações de outras normas, pertinentes aos mesmos institutos jurídicos. Nos tempos atuais, não se justifica que a contestação da paternidade pelo marido, dos filhos nascidos de sua mulher, se restrinja às hipóteses do art. 340 do Código Civil, quando a ciência fornece métodos notavelmente seguros para verificar a existência do vínculo de filiação. Decadência. Código Civil, art. 178, § 3º. Admitindo-se a contestação da paternidade, ainda quando o marido coabite com a mulher, o prazo de decadência haverá de ter, como termo inicial, a data em que disponha ele de elementos seguros para supor não ser o pai de filho de sua esposa."

No corpo do acórdão, foi invocada a doutrina de LUIZ EDSON FACHIN, que faz o seguinte alerta:
"A posse de estado começa a exercer um papel decisivo para o estabelecimento da paternidade. É preciso, então, verificar o que a elevou a esse patamar. O sistema clássico de estabelecimento da filiação vinha assentado na direção protetiva da instituição familiar matrimonializada e calcado, por isso, numa visão patriarcal e hierarquizada da família. O estabelecimento da filiação, seguindo essas diretivas, chancelava um conjunto de normas para dar abrigo jurídico à defesa superior da família, sacrificando outros valores que podiam parecer incongruentes com esse mister. Muitas vezes, não passava pelos muros da verdade jurídica a busca da verdade biológica, menos ainda a da verdade socioafetiva, a não ser nos limites estreitos previstos pelo próprio sistema no seio da 'contestação' privativa da paternidade. A superação desse sistema leva em conta precisamente a verdade da filiação, permitindo-se perquirir a verdadeira descendência genética. Mas, além disso, expressivo movimento legislativo percebeu uma realidade marcante: a verdadeira paternidade não pode se circunscrever na busca de uma precisa informação biológica; mais do que isso, exige uma concreta relação paterno-filial, pai e filho que se tratam como tal, donde emerge a verdade socioafetiva. Balanceando a busca da base biológica da filiação com o sentido socioafetivo da paternidade, o legislador valeu-se da conhecida noção de posse de estado. Não é propriamente à verdade biológica da filiação que a posse de estado de filho serve prioritariamente. Depreende-se que ela se dirige mais a valorizar o elemento afetivo e sociológico da filiação, porque sua ausência pode pôr em dúvida o vínculo da filiação" (Da paternidade – relação biológica e afetiva. Del Rey, 1996, p. 61 e ss.).

Também consta desse acórdão que a presunção legal da paternidade "cede diante da realidade contrária". E essa cedência da paternidade frente à realidade contrária, com o advento da Constituição Federal de 1988, é justamente a edificação de estado de filho afetivo, ou seja, quando um pai cria e educa uma pessoa como filho, mesmo que não biológico, ele deixa emergir o estado de filho sociológico, a verdade socioafetiva. Com isso, não mais poderá impugnar essa paternidade, mesmo que não seja o pai genético, porquanto, no Brasil, existem apenas duas verdades da perfilhação: biológica e socioafetiva (sociológica, afetiva). A impugnação da paternidade somente pode ser efetivada enquanto não presente o estado de filho socioafetivo, mas fica em aberto o direito do pai em ajuizar ação de anulação ou nulidade de registro por vício de manifestação de vontade ou por falsidade, em caso de dolo, fraude, coação, erro ou simulação.

Esse pensamento tem repercussão no campo da prescritibilidade da ação de investigação de paternidade, isto é, enquanto o filho não ostentar o estado de filho afetivo, a paternidade biológica poderá ser investigada, a qualquer tempo, e de forma ampla, para todos os efeitos jurídicos. Contudo, verificado o estado de filho socioafetivo, não mais será possível a investigação da paternidade biológica em todos os seus efeitos jurídicos, e sim apenas para preservar os impedimentos matrimoniais e a vida e a saúde do filho e dos pais biológicos, em caso de grave doença genética, pois não podem coexistir a paternidade afetiva e biológica, ao mesmo tempo, salvo se o pai biológico também for o social.

9 - Desnecessidade de Legislação Infraconstitucional para o Ajuizamento da Ação de Investigação de Paternidade Socioafetiva

A doutrina recorda que o Código Civil de 1916 e o novo Código Civil não albergam o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), mas, mesmo assim, é sufragada a idéia de que a Carta Magna de 1988 reconheceu a paternidade e maternidade socioafetiva, alimentando "a esperança de que o legislador brasileiro preencha essa lacuna do direito pátrio, consagrando a posse de estado de filho em nosso ordenamento".

Com efeito, a doutrina, de um modo geral, tem contrariado duas afirmações: a primeira, a de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, de que "aceitar a posse de estado como hipótese não prevista é atribuir poder legiferante ao juiz, o que é incompatível com a natureza de direito escrito, do nosso sistema"; a segunda, a idéia de NÁGILA MARIA SALES BRITO, de que, "na ausência das causas elencadas no multicitado dispositivo de lei, torna-se impossível reconhecer a paternidade, mesmo restando provados o tractatus, o nomen e a fama", o que se haure dos seguintes termos: 1) "torna-se imperioso abrir maior espaço, entre nós, à posse do estado de filho, cujo papel no direito de família não pode ficar limitado ao âmbito da prova, senão que deve alcançar a própria constituição do status familiae"; 2) não apontando para a filiação sociológica, deixa-se "profunda lacuna no roto discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto, realmente não exercem a completa igualização"; 3) "o retorno à noção de 'posse de estado' se verifica em razão da valorização das relações de afeto, da paternidade construída pelos 'laços que a vida diária tece'"; 4) "haverá razão mais nobre que o direito à filiação, com direitos de plena igualdade, como prega o texto constitucional, que prioriza a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do próprio Estado?"; 5) "esse aparente vazio pode ser legislativo, mas não será um óbice jurídico, porque essa suposta lacuna não afasta a integração do sistema do Direito. Tarefa difícil, mas necessária e imprescindível"; 6) "é importante, na ausência da lei, que o julgador tenha coragem e inove, adequando as normas à realidade social, defendendo, assim, os interesses e os anseios de uma sociedade desacreditada e carente de justiça".

Admito que o direito ao estado de filho afetivo não consta expressamente, mas de forma implícita do Texto Constitucional, pelo que desnecessária a promulgação de lei disciplinando a matéria, pelas seguintes razões:

- a primeira, a Constituição Cidadã de 1988, ao reconhecer a igualdade da filiação, não discrimina os filhos havidos, ou não, na constância do casamento, da união estável ou da comunidade formada entre o pai e/ou a mãe e o filho, pelo que os filhos têm o direito constitucional à paternidade e maternidade biológica ou socioafetiva;
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- a segunda, a Constituição Federal de 1988 (art. 226, § 4º) 139 engendrou a família monoparental, unilinear, nuclear, pós-nuclear, eudemonista ou socioafetiva, vivida no cumprimento das necessidades pessoais, com a comunhão de sentimentos e de afeto. Atesta LUIZ EDSON FACHIN que, "sob a concepção eudemonista da família, não é o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o desenvolvimento pessoal do indivíduo, em busca de sua aspiração à felicidade". Logo, em tendo sido constitucionalizada a família sociológica, o Texto Constitucional trouxe ao ordenamento jurídico pátrio a filiação socioafetiva, eudemonista, afetiva, social, sociológica, isto é, transformou o afeto em valor jurídico;
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- a terceira, o Pacto Constitucional de 1988, nos arts. 1º, incisos II a IV, 3º, incisos I e IV, 4º, inciso II, apenas para citar alguns exemplos, valorizou a família e a pessoa humana, alçando a cidadania e a dignidade a fundamento do Estado Democrático de Direito e da República Federativa do Brasil. E nos arts. 226 a 230, quando tratou da família, da criança, do adolescente e do idoso, o Constituinte revogou todos os dispositivos legais do Código Civil de 1916, ainda arraigados ao Direito Romano, em que prevalecia a hierarquia e os interesses da família em detrimento do bem-estar de seus membros. Pelo Texto Constitucional brasileiro, a família é que deve ter como objetivo a felicidade de seus integrantes, pelo que está constitucionalizado o afeto, o carinho, o desvelo, a solidariedade.


Sendo assim, a família deste século não se identifica apenas pela existência da face tríade: pai, mãe e filho, mas também na imagem bifronte: pai ou mãe e filho. Além disso, o vínculo e parentesco genético devem ceder lugar, paulatinamente, "à noção de filiação de afeto, de paternidade e maternidade social ou sociológica", o que está desaguando num "conceito de felicidade individual em todas as searas jurídicas".

A família eudemonista busca a felicidade individual, vivendo um processo de emancipação de seus membros, "todos disputando espaços próprios de crescimento e de realização de suas personalidades, convertendo-se para o futuro em pessoas socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficar confinado à mesa familiar". Isso bem demonstra a profunda modificação do conceito de unidade familiar, pois, antes da Constituição Federal de 1988, a família era composta de pais e filhos legítimos, somente edificada no casamento, mas, agora, a família é originária do casamento, da união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, independentemente da origem da filiação, e inteiramente voltada à "realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros".

Os direitos fundamentais, como, por exemplo, a filiação socioafetiva, pela sua importância material e formal, "foram consagrados no Texto Constitucional, sendo retirados da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos. Lutar pelos direitos fundamentais significa ter como meta a permanente e plena realização do princípio da dignidade da pessoa humana", já que, como refere LUIZ EDSON FACHIN, "tanto no plano patrimonial como no plano pessoal, todos os filhos têm o mesmo direito, sob os princípios da neutralidade e da inocência. Tão-só obedecer o comando constitucional".

Os direitos fundamentais da pessoa, constantes da Constituição Cidadã de 1988, bem demonstram que não é mais possível a denegação da cidadania e da dignidade humana, devendo-se assegurar a todos, indistintamente, esses princípios, porquanto, conforme feliz expressão de JORGE MIRANDA, "enquanto houver uma pessoa que não veja reconhecida a sua dignidade, ninguém pode considerar-se satisfeito com a dignidade adquirida". Localiza-se "as raízes da recepção do pluralismo, em matéria de família, pelo sistema jurídico no respeito aos direitos de cidadania e à dignidade humana", para que seja mantida a intangibilidade das dignidades dos filhos afetivos e biológicos, em igualdade de condições, na medida em que "nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana". Como refere o Constitucionalista português GUILHERME DE OLIVEIRA, a verdade biológica parece ser "a verdade verdadeira, mas não se concebe um sistema jurídico que, embora não o diga, não conceda um lugar à verdade sociológica, aos hábitos individuais, familiares, sociais [...]. O facto de viver como se o vínculo biológico existisse cria [...] uma comunidade psicológica que pode ser tão forte como a comunidade de sangue [...] que seria pouco realista abalar [...], pois juieta non movere é uma das máximas secretas do Direito. Em suma, tratou-se de dar relevância à verdade sociológica da filiação, de guardar a paz das famílias que assente na comunhão filial duradoura".

Na jurisprudência já se encontra decisão no sentido da auto-aplicabilidade da filiação sociológica, conforme comprova o seguinte julgado:
"A despeito da ausência de regulamentação em nosso direito quanto à paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção à criança (art. 227 da CF), assim como da doutrina da integral proteção consagrada na Lei nº 8.069/90 (especialmente nos arts. 4º e 6º), é possível extrair os fundamentos que, em nosso direito, conduzem ao reconhecimento da paternidade socioafetiva, revelada pela 'posse do estado de filho', como geradora de efeitos jurídicos capazes de definir a filiação."

10 - Considerações Finais

O novo milênio se depara com uma nova concepção de família, pois, no Direito Romano, a família era numerosa, edificada apenas pelo casamento, arquitetada de forma hierarquizada, em que o pai tinha o poder de vida e de morte sobre os filhos e importava mais o contexto familiar do que o bem-estar de seus membros. Hoje, no Direito brasileiro, a família é construída não tão-somente pelo casamento, mas também pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, denominada família monoparental, nuclear, pós-nuclear, unilinear, eudemonista ou sociológica, na qual é professada a reciprocidade do ideal de felicidade, de desvelo, de carinho, de comunhão de afeto.

Como corolário da família eudemonista, a Carta Magna de 1988 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a filiação socioafetiva, dividindo o espaço social e jurídico com a filiação biológica (arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227, § 6º). Alguma resistência ainda reside na doutrina e na jurisprudência, que insistem em afirmar que a verdadeira paternidade é apenas a genética, mas, como lembra o Jurista português GUILHERME DE OLIVEIRA, "não se concebe um sistema jurídico que, embora não o diga, não conceda um lugar à verdade sociológica".

Em habitando no ordenamento jurídico brasileiro tão-só as filiações biológica e sociológica, está extinta a filiação formal, ficção jurídica, mera presunção da paternidade e maternidade. Não se trata, com isso, de uma desbiologização da filiação genética, mas, sim, de um fortalecimento das duas perfilhações biológica e sociológica; a primeira, porque, com a produção do exame genético em DNA, a paternidade e maternidade são comprovadas com certeza científica; a segunda, com o acolhimento da Constituição Federal de 1988 da família eudemonista e instalando a igualdade entre todos os filhos, o afeto foi reconhecido como valor jurídico.

Com a exclusão e a afirmação, em praticamente 100% da paternidade e maternidade na produção do exame genético em DNA, que significa certeza científica, não se pode conceber que, na atualidade, essa prova não seja produzida na ação de investigação de paternidade e maternidade biológica, inclusive, se necessário, com a condução coercitiva do investigado, relativizando-se o princípio da dignidade da pessoa humana.

No decorrer da pesquisa científica, observou-se fenomenal mudança nos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, alçados a fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito. Com isso, não é mais possível a prolação de sentença no âmbito do Direito, essencialmente no recanto familiar, sem antes consultar esses dois superprincípios, para que, conforme sustenta LENIO LUIZ STRECK, haja o acontecer, o (des)velamento da Constituição Federal, já que é a forma suprema de todo o ordenamento jurídico e, sobretudo, "o que se pode chamar de validade do texto condicionado a uma interpretação em conformidade com o Estado Democrático de Direito".
Diante desse plenário jurídico, vê-se que são muitos os questionamentos a serem enfrentados pelos cultores do Direito, mas, conforme refere LUIZ EDSON FACHIN, cada questão contém, "em si mesmo, o gérmen de sua própria redargüição", e embora os fatos continuem a surpreender o Direito, a República Federativa do Brasil e o Estado Democrático de Direito estão assentados sobre o notável princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III, da CF), princípio "mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição", 162 reclamando que, "enquanto houver uma pessoa que não veja reconhecida a sua dignidade, ninguém pode considerar-se satisfeito com a dignidade adquirida". É dizer, o princípio da dignidade da pessoa humana é a base, o alicerce, o fundamento da modernização, socialização e humanização do Direito.

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